abril 23, 2009


A / C


Lendo um artigo (de um cara chamado Luiz Carlos Oliveira Jr.) sobre o filme Stalker, fui reconhecendo, não apenas o filme, mas minha sensibilidade..., isso dá um belo conforto. O Machado de Assis tem uma declaração muito contundente sobre a mazela dos que não descobriram o prazer da cultura... dizia ter pena dos ‘ignorantes/iletrados’ não porque fossem pessoas incapazes, mas porque estavam irremediavelmente presos em suas solidões ontológicas. Faz falta essa consciência por aí...não? Ou é arrogância minha? Bom, mas separei uns trechos do artigo e grifei umas frases mais caras pra mim.

Stalker não é um filme cerebróide, hermético, que segue a linha da "ficção-científica para iniciados" e faz disso seu objetivo. É antes um filme que pode ser visto abstraindo-se toda sua carga de significação mais complexa (que lá está de forma latente) eatendo-se tão-somente aos seus aspectos mais básicos.

O filme gira em torno de uma idéia central perfeitamente bem acabada. Mas qual seria essa idéia? A busca da fé, a reconciliação com um imaginário fundador, a odisséia de curados medos e desinquietação das pulsões? (Nas grandes obras de arte, é comum perdermos de vista a idéia central, que, de tão coesa, atua até mesmo invisivelmente.) A atmosfera peculiar deStalker emerge como resposta do meio-ambiente ao filme. Os corpos, os objetos, as paisagens, o vento, a neve, tudo no filme responde a essa idéia que não sabemos exatamente o que representa, que não mostra sua face definitiva (ainda que o final entregue algumas de suas coordenadas), mas que incrivelmente existe e é o que fornece solo firme para o filme ser o que é: um estudo cuidadoso sobre a movimentação de corpos e a topografia de uma superfície (da imagem, dos rostos, das paredes) para além de qualquer noção prévia de profundidade.

A aparência é o que recobre todas as coisas, é a pele do filme, mas também sua medula (não custa lembrar que a origem embrionária do sistema nervoso central é ectodérmica). E por que ultrapassar a superfície, se quem olha (dentro do filme e para o filme) não acredita na profundidade? "Eles não têm fé!", reclama o Stalker, personagem que será descrito mais adiante. 

"To stalk" é um verbo inglês, que significa caminhar pé ante pé, dar passos longos, marchar titubeando. É o andar característico de quem invade um território desconhecido, e pode significar também caçar um animal ocultando-se atrás de outro. Uma forma bastante peculiar de aproximação e de perseguição – quase uma dança.

Cada personagem tem sua marcha própria, sua envergadura física, sua "presença orgânica". Tudo é orgânico em Stalker, incluindo a água, a terra, o vento, o fogo, tudo. A recorrência dos quatro elementos na obra de Tarkovski, como bem sabemos, tem muito mais uma função física do que simbólica. A água possui uma aparição constante em Stalker, o filme mais úmido da história, e sua importância está justamente na sua natureza, ou seja, em ser uma matéria primitiva, um dos constituintes fundamentais e preponderantes de tudo que existe no mundo, a começar pelos homens. E não é só a imagem-miríade da água (lago, poça, chuva, goteira), é também seu som em diversas modalidades (ora um barulho de cachoeira, ora um gotejar que ocupa praticamente toda a banda sonora). Embora passe por entre os dedos, a água tem um peso. Embora passem perante nossos olhos e não voltem, as imagens de Tarkovski têm um peso: a densidade não só do tempo que elas materializam, mas também do estranhamento que, mesmo terminado o filme, não se esgota em nenhuma interpretação.

Mas a verdadeira motivação de sua ida constante àquele lugar se explica numa cena das mais bonitas: logo que eles chegam nas imediações da Zona, o Stalker se atira ao chão e chafurda o rosto no capim, como a absorver o vapor da terra, se alimentar do húmus. Nesse momento, vem à mente uma parábola contada no filme seguinte de Andrei Tarkovski, NostalgiaA parábola consiste num homem que vê outro se afogando num lamaçal e vai a seu resgate. Quando chegam à margem e o herói pergunta ao outro homem se está tudo bem, este último responde injuriado: "Seu tolo, é lá que eu moro". Do mesmo modo, a mulher do Stalker dá um ataque histérico no começo do filme, tentando impedi-lo de ir à Zona, mas o que ela não percebe (na verdade, finge não perceber) é que ele pertence àquele limbo. O Stalker é o tecido de transição entre o Escritor (com sua garrafa de vodka embrulhada numa sacolinha plástica) e o Professor (com sua mochila de suprimentos e artefatos secretos). 

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